A Bíblia não é apenas a Bíblia. Ela também funciona como uma espécie de
Constituição. Natural: o Livro Sagrado não é exatamente um livro, mas
uma coleção de 66 livros. Alguns são basicamente de histórias, caso do
Gênesis, que narra o início dos tempos e as origens do povo de Israel.
Outros não. Eram obras que, antes de entrarem para a Bíblia, tinham vida
própria na forma de códigos de conduta. Ou seja: eram versões antigas,
escritas entre o século 10 a.C. e 5 a.C., daquilo que hoje conhecemos
como "código civil" e "código penal".
Esses códigos, essas
leis, estão principalmente nos livros Deuteronômio e Levítico. Mas
aparecem por praticamente toda a Bíblia, inclusive no Novo Testamento,
escrito a partir do século 1 e que revisa boa parte dessas leis. Por
essas, muitos preceitos bíblicos são contraditórios ou sujeitos a mais
de uma interpretação. "No contexto em que foram escritos, porém, eles
ajudaram a formar um povo com uma identidade tão forte que sobreviveria a
séculos de diáspora e uma religião que dominaria o mundo ocidental",
diz o historiador Marc Zvi Brettler, professor de estudos judaicos da
Universidade Brandeis, nos EUA. Nas próximas páginas, vamos fazer uma
viagem pelas leis daquele tempo e daquele espaço. É a Bíblia. Mas como
você nunca leu.
MARIDOS & ESPOSAS
Poucas coisas mudaram tanto nos últimos 3 mil anos como a instituição do
casamento. Então esse é o nosso primeiro tópico. Para começar, o Velho
Testamento deixa claro que as mulheres deveriam ser funcionárias de seus
maridos. Funcionárias mesmo: não só com deveres, mas com direitos
também. Se uma esposa fosse "demitida" pelo parceiro, por exemplo, podia
ganhar uma carta de recomendação, que a moça podia usar como trunfo na
hora de tentar uma vaga de mulher de outro sujeito.
Não é
exagero falar em "vaga": um homem podia ter tantas esposas quanto
quisesse (ou melhor: quanto pudesse adquirir e sustentar). A poligamia
era a regra. Tanto que o primeiro caso aparece logo no capítulo 4 do
primeiro livro da Bíblia: "E tomou Lameque para si duas mulheres"
(Gênesis).
A situação era tão comum que vários dos personagens
mais importantes do Antigo Testamento viviam com mais de uma esposa sob o
mesmo teto. Abraão acolhe uma segunda mulher a pedido de Sara, sua
número 1, que não conseguia ter filhos. Depois a própria Sara dá à luz
Isaac, enquanto a escrava Hagar tem Ismael. Nota: a tradição considera o
primeiro como pai de todos os judeus e o segundo, patriarca dos povos
árabes.
O caso de Jacó, filho de Isaac e também patriarca de
todos os judeus, é o mais conhecido: ele casa com as irmãs Lea e Raquel,
filhas de Labão. E compra o dote delas trabalhando no pastoreio do
sogro por 14 anos - 7 anos de labuta por cada esposa.
Mas nunca
na história do Livro Sagrado houve maior predador matrimonial que
Salomão, o rei: foram 700 esposas. Setecentas de papel passado, já que o
sábio soberano ainda mantinha 300 concubinas. E tudo isso sem pílula
nem camisinha... Por isso mesmo o Deuterônimo traz regras para a
distribuição de bens entre filhos de diferentes mulheres - os rebentos
de mães com mais milhagem em anos de casamento ganham mais. E os
primogênitos também. Mas por quê, afinal, a poligamia era a regra lá
atrás? "Provavelmente porque havia mais mulheres do que homens entre os
judeus, que com frequência estavam envolvidos em guerras violentas. A
poligamia, então, era uma forma de garantir a manutenção da população",
diz o historiador Richard Friedman, professor de estudos judaicos da
Universidade da Geórgia. "Além disso, uma mulher solteira tinha
pouquíssimas alternativas para sobreviver, a não ser se prostituir.
Quando um único homem é provedor de várias mulheres, essa questão acaba
minimizada."
O Novo Testamento não cita tantos exemplos de
poligamia, mas sugere que ela ainda era comum no século 1. Jesus não
toca no assunto, mas, em duas cartas, são Paulo recomenda que os líderes
da nova comunidade cristã tenham apenas uma esposa porque "assim eles
teriam mais tempo para dedicar aos fiéis". "O cristianismo só refuta a
poligamia quando se aproxima do poder em Roma, que proibia a poligamia",
afirma Brettler. Como escreve santo Agostinho no século 5, "em nosso
tempo, e de acordo com o costume romano, não é mais permitido tomar
outra esposa".
Escravas também tinham direitos: se um homem
casava com uma de suas servas, só poderia se divorciar se vendesse a
mulher para outro senhor. Bom para a mulher, já que evita a situação
constrangedora de trabalhar para o ex - e de graça... Menos "feminista" é
outra lei bíblica: quando um homem morre e deixa uma viúva, seu irmão
deve casar com ela, para garantir que o patrimônio da família não se
perca. O adultério, adivinhe, é crime - pudera: no Brasil mesmo era
crime até 2005 (detenção de 15 dias a 6 meses, segundo o artigo 240 do
Código Penal). A diferença é que lá a pena era de morte mesmo - para
ambos os envolvidos na relação sexual fora da lei.
Mais brando é
são Paulo, que dá orientações para o dia a dia do casal. Ele até diz
que os homens são a cabeça da relação, mas pede que os maridos respeitem
as esposas. Um grande salto para nas regras de matrimônio da
Antiguidade.
SEXO Além de polígamo,
qualquer homem podia ter amantes, contanto que oficiais. Eram as
concubinas. Jacó trabalhou 14 anos pela posse de suas duas mulheres -
mas ganhou duas concubinas de bônus pelos bons serviços prestados. Uma
série de regras estabelece como deve ser a vida sexual também: toda
mulher tem de se casar virgem, ou então poderá ser dispensada pelo
marido - por outro lado, se o marido acusar falsamente a esposa de não
ter casado casta, deve permanecer com ela até o fim da vida. Para
comprovar sua pureza, a acusada devia apresentar testemunhas dispostas a
defender a limpidez do passado dela. As leis sexuais, enfim, eram bem
abrangentes: "Quem tiver relações com um animal deve ser morto", diz o
Êxodo. E masturbação também não pode. Como diz o sutil são Paulo: "A
mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao marido. E o marido
não pode dispor do seu corpo: ele pertence à esposa". "O sexo na Bíblia é
cheio de contradições", diz o arqueólogo Michael Coogan, autor de God
and Sex (Deus e o Sexo). "É de se desconfiar que fossem realmente
levados a sério naquela época."
BÍBLIA S/A - NEGÓCIOS E FINANÇAS
A ética comercial do Livro Sagrado tem regras simples: não roubar nem
trapacear no peso ou fazer nada que prejudique a outra parte. A cobrança
de juros também é proibida. As ordens se repetem ao longo da Bíblia,
sempre em tom firme: "Não tomarás dele juros nem ganho" (Levítico), "Não
emprestando com usura, e não recebendo mais do que emprestou"
(Ezequiel). E isso numa época em que a grande moeda corrente eram sacos
de grãos. O fato é que a restrição à cobrança de juros é mais antiga do
que a Bíblia. As leis da Babilônia, codificadas mil anos antes, já
impunham tetos na cobrança de juros, provavelmente para evitar que os
mais espertos enriquecessem à custa de empobrecer o resto da sociedade.
Jesus, inclusive, radicaliza. Não só condena os juros como também a
cobrança do principal (a quantia emprestada inicialmente): "E se
emprestardes àqueles de quem esperais receber, que mérito há nisso?"
(Lucas). Cristo, aliás, dá muita atenção à cobiça. "Não podeis servir a
Deus e às riquezas" (Mateus, 6:24), diz. E pede que seus seguidores
façam como os lírios-do-campo, que recebem proteção e alimento da
divindade sem precisar trabalhar. Também diz, para desespero de um fiel
cheio de posses, um de seus maiores hits verbais: "É mais fácil um
camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino
dos Céus". Mas existe uma exceção na política bíblica de juros: nos
casos em que o empréstimo é concedido a um não-judeu ("um estranho", nas
palavras do Deuterônimo), é permitido praticar a usura. Até por isso os
judeus se tornaram os grandes banqueiros da Idade Média. Os cristãos
também respeitavam a Bíblia, e não emprestavam a juros entre si (para
eles, os "estranhos" eram os judeus). Mas num mundo sem juros o estímulo
para conceder empréstimos é nulo. Então a maioria cristã pedia
empréstimos para quem os concedia, a juros - as minorias judaicas. O
fato de os judeus não terem direito à posse de terras também ajudava -
emprestar a juros era uma das poucas formas de renda possíveis para quem
não tinha como plantar para acumular excedentes.
Se o Livro
Sagrado proíbe a cobrança de juros, mas só entre judeus, o mesmo vale
para a escravidão. Você pode ter escravos, contanto que "sejam das
nações que estão ao redor de vós; deles comprareis escravos e escravas",
diz o Levítico. Mas havia uma exceção: era possível a um judeu
endividado vender a si mesmo para o credor.
"A escravidão era
comum entre todos os povos daquela área, mas os servos eram
relativamente bem tratados, sem violência desnecessária. Os próprios
israelitas seriam respeitados quando foram forçados ao exílio na
Babilônia", afirma a historiadora Catherine Hezser, professora de
história das religiões da Universidade de Londres e autora de Jewish
Slavery in Antiquity (Escravidão Judaica na Antiguidade).
Por
isso mesmo, os israelitas são orientados a conceder uma série de
direitos a seus escravos, que servem por 6 anos, e no sétimo são
libertados. Se ele for escravizado com a esposa, os dois são libertados
juntos. Até para punir os indisciplinados existem regras - se o dono
arrancasse um olho do servo, seria obrigado a libertá-lo (Êxodo). Ou
seja: a Bíblia também servia como uma espécie de CLT para escravos.
Mas a parte mais humanista nas relações de trabalho previstas na Bíblia
é uma regra para os fazendeiros: sempre deixar sem colher as plantações
das bordas do terreno. Para quê? Para que as pessoas mais pobres,
sem-terra, possam aproveitar essa parte.
MARVADO VINHO
O álcool nem sempre foi consumido com moderação na Bíblia. A palavra
"vinho" é citada mais de 200 vezes, e os porres são frequentes: Ló é
embebedado pelas filhas e Amnon, filho de Davi, está mais pra lá do que
pra cá quando é assassinado por ordem de seu irmão Absalão - a quem
interessar: foi pelo crime de ter estuprado a própria irmã, Tamar. "Os
sacerdotes são orientados a não beber antes de entrar no templo, e o
álcool é relacionado à perda de controle pessoal e da capacidade de
diferenciar o bem do mal. Mas nada no texto bíblico proíbe o consumo",
diz historiador Marc Zvi Brettler.
O álcool chega a ser
recomendado para curar os males da alma. Está no livro Provérbios: "Dai
bebida forte ao que está prestes a perecer, e o vinho aos amargurados de
espírito".
Às vezes, a coisa era uma festa da uva mesmo. Davi,
num arroubo de populismo, oferece uma jarra de vinho a cada cidadão de
Israel. E tem o primeiro milagre de Jesus: transformar água em vinho ¿
segundo o evangelista João, no melhor vinho da festa. São Paulo vai mais
além: recomenda a um discípulo, Timóteo, que troque a água pelo vinho. A
dica tinha um motivo prático. "Às vezes, naquele tempo, era mais
saudável consumir álcool do que água, que frequentemente era insalubre",
diz Brettler.
SAÚDE E EDUCAÇÃO A medicina
bíblica é obcecada por manchas na pele - uma preocupação muito
compreensível para um povo que vivia no deserto, sob um sol escaldante.
Os líderes religiosos é que faziam o papel de médicos. "Quando um homem
tiver na pele inchação ou pústula, então será levado a Arão ou a um de
seus filhos, os sacerdotes" (Levítico).
Os sacerdotes avaliavam
pessoalmente cada caso suspeito, seguindo as regras estabelecidas por
Deus, transmitidas a Moisés e transcritas no Livro Sagrado. Primeiro,
passar azeite sobre o ferimento (o mesmo produto também é recomendado
para lavar os cabelos). Depois de uma semana, no retorno da consulta,
vem o diagnóstico definitivo: se o pelo sobre a mancha estiver mais
claro, e a ferida estiver mais funda do que a pele, o doente tem lepra.
A partir desse momento, a vítima não tem mais espaço na comunidade. É
obrigada a andar pelas ruas, anunciando sua condição para evitar que
desavisados entrem em contato com o doente e também sejam contaminados.
Ocasionalmente, profetas conseguiam curar leprosos. No Novo Testamento,
os sacerdotes cristãos são indicados para curar todo tipo de doença. "A
oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará" (Tiago).
A preocupação com a pele não era a única norma de conduta social. Era
proibido cortar e aparar a barba ou vestir tecidos que misturassem lã e
linho (Levítico) - hoje, entre as comunidades que buscam seguir a Bíblia
ao pé da letra, existem testadores de tecido, especializados em
monitorar a composição das roupas com um microscópio e impedir fiéis de
desobedecer à orientação e cometer pecado. Pela regra, também é
importante vestir sapatos seguindo uma ordem - primeiro o pé direito. Se
for necessário amarrá-lo, é o contrário: primeiro o esquerdo.
A
Bíblia também orienta na educação dos filhos. Eles devem ser
apresentados a Deus recém-nascidos e, no caso dos meninos, circuncidados
no oitavo dia de vida. Ao longo da infância, os pais têm a obrigação de
repassar a eles a palavra de Javé. Já o Novo Testamento é mais
pedagógico, digamos assim: enfatiza a educação pelo bom exemplo dos
pais, para que os jovens respeitem a Deus e se comportem corretamente
por vontade própria, e não porque foram forçados. Criar adultos calmos e
centrados também é importante. "E vós, pais, não provoqueis vossos
filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor"
(Efésios). Quando não funcionar, o Antigo Testamento indica que um
bastão flexível deve ser usado para bater nos desobedientes (no Brasil,
seu uso poderá trazer problemas com a Justiça caso seja aprovada a Lei
da Palmada). O objeto tem até nome, vara da correção, e é indicado para
qualquer situação em que o pai considere que a criança não seguiu suas
instruções.
"A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança
entregue a si mesma envergonha a sua mãe" (Provérbios), diz o texto
bíblico, que promete: o castigo pode dar frutos no futuro. "Disciplina
seu filho, e este lhe dará paz, trará grande prazer a sua alma". Mas
cuidado - a punição não pode ser exagerada: "Castiga seu filho, mas não
te excedas a ponto de matá-lo" (Provérbios).
HOMOSSEXUALIDADE
O amor entre homens era punido com a morte - a não ser que você fosse o
rei Davi. Os livros Samuel I e Samuel II contam a história da amizade
entre ele e Jonatã, filho do rei Saul, antecessor de Davi e candidato
natural ao trono de Israel. Davi acaba escolhido para a sucessão, mas
isso não abala o relacionamento dos dois. Está escrito: "A alma de
Jonatã se ligou com a alma de Davi. E Jonatã o amou, como à sua própria
alma" (Samuel I). Em outra passagem, Jonatã tira todas as roupas,
entrega a Davi e se deita com ele. "E inclinou-se 3 vezes, e beijaram-se
um ao outro" (Samuel I). "Esse relato incomoda os intérpretes
tradicionais da Bíblia, que tentam explicar a relação como uma forte
amizade, e o beijo como um costume comum entre homens", diz o
historiador finlandês Martii Nissinen, da Universidade de Helsinki e
autor de Homoeroticism in the Biblical World (Homoerotismo no Mundo
Bíblico). "Mas é difícil negar a referência à homossexualidade nesse
caso, mesmo que a lei judaica a proíba expressamente." Em mais de uma
ocasião, os relacionamentos entre homens são chamados de "abominação" e
"pecado contra Javé". Para alguns especialistas, o Antigo Testamento
também sugere um relacionamento homossexual entre duas mulheres, Noemi e
sua nora Rute. Está no livro de Rute um trecho em que ela diz a Noemi:
"Aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei
eu." Onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada".
SACRIFÍCIOS
Muito sangue jorra na Bíblia. Abraão é orientado a sacrificar seu
próprio filho Isaac a Javé - e teria obedecido, caso um anjo não
aparecesse no último minuto dizendo era tudo um teste para sua fé. Além
disso, durante os 40 dias em que detalha suas regras ao patriarca, Deus
exige uma série de sacrifícios de animais.
Os rituais são
descritos com grande riqueza de detalhes. Moisés manda matar e drenar 12
bois. O sangue é colocado numa tina. Metade é lançada no altar e o
resto sobre a multidão. Carneiros abatidos são esfregados no corpo de
fiéis, que seguram seus rins nas mãos para oferecê-los a Javé. Pedaços
de bichos são queimados sobre o altar. Era uma forma de trocar favores
com os deuses. Por isso mesmo, o sacrifício de animais existe em
praticamente todas as culturas da Antiguidade. "O sangue é o maior
símbolo da vida. Ao usá-lo em rituais, os fiéis reforçavam seu vínculo
com a divindade e se purificavam", diz Richard Friedman.
Jesus
aparece com uma novidade: não pede sangue animal. "Eu quero a
misericórdia, não o sacrifício". Friedman explica: "Na interpretação
cristã posterior, o próprio Jesus é considerado o sacrifício final, que
limpa os pecados da humanidade de forma definitiva, o que dispensa a
morte de animais".
CRIME E CASTIGO
Sequestro, adultério, homossexualidade, prostituição... Tudo isso dava
pena de morte. Até fazer sexo com uma virgem poderia custar a vida do
"criminoso". Esse caso, aliás, é um labirinto jurídico: se um homem
transar com uma virgem dentro de uma cidade, os dois morrem; se for no
campo, só ele. A lógica é que, dentro da cidade, alguém ouviria a virgem
gritando por socorro caso o sexo não fosse consentido. Se ninguém ouviu
é porque ela não gritou, supõe a lei. E se não gritou é porque cometeu
um crime também - o de consentir. No campo é diferente: não dá para
saber se ela gritou ou não. Na dúvida, então, morre só o homem.
Matar também dava em pena de morte, claro: "Se alguém derramar o sangue
do homem, pelo homem se derramará o seu" (Gênesis). Adorar outros
deuses também trazia problemas sérios, já que é sinal de desobediência a
um mandamento fundamental: "Não terás outros deuses diante de mim".
Moisés chega a mandar matar 3 mil judeus por causa disso.
Matar
o próprio escravo também trazia problemas. "Se alguém ferir seu escravo
ou sua escrava com um bastão e morrer sob suas mãos, seja punido
severamente, mas se sobreviver um ou dois dias, não seja punido, porque é
seu dinheiro" (Êxodo). A pena indicada, nesse caso, é o açoite, com um
limite de 40 chibatadas.
O Levítico também manda matar
prostitutas a pedradas, a não ser que a moça de vida fácil seja filha de
um sacerdote. Aí a punição é pior: "Com fogo será queimada". A regra
seria fortemente contestada por Jesus, com a famosa frase que salvou
Maria Madalena: "Aquele que não tem pecado atire a primeira pedra".
Ainda assim, nem todos os autores do Novo Testamento parecem concordar
com a recomendação de Cristo. As cartas de são Paulo, por exemplo,
defendem o respeito à lei romana, que autoriza o apedrejamento a
prostitutas.
Como o Antigo Testamento não aceita o aborto, é
crime provocá-lo, mesmo que por acidente, mas a pena depende da
gravidade da situação. Se dois homens brigarem e, no meio do quebra-pau,
ferirem sem querer uma mulher grávida que estava por perto e provocarem
a morte do feto, os dois vão pagar uma indenização estabelecida pelo
marido - que perdeu um bem precioso, seu herdeiro. Agora, se a mãe ficar
gravemente ferida ou morrer, então vale a famosa lei do Talião - "Olho
por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por
queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe" (Êxodo). Em geral,
a pena de morte por apedrejamento não precisava ser julgada pelos
sacerdotes. A maioria dos crimes recebia a punição na hora, diante de um
grupo de pessoas que presenciaram a cena ou que estavam por perto da
cena do crime e foram informadas. Mas também existem regras mais amenas,
estas, sim, negociadas dentro dos tribunais e com direito a defesa do
acusado. Por exemplo: o Antigo Testamento estabelece que toda mulher
menstruada é tão impura que até mesmo os lugares onde ela se senta devem
ser evitados. Se um homem encostar na esposa, na mãe ou na irmã nesse
período do mês, ele não pode sair de casa por sete dias. E, se fizer
isso, pode ter de pagar uma multa.
Em caso de roubo e furto ou
qualquer outro prejuízo ao patrimônio alheio, como matar por acidente o
cabrito do vizinho, a pena é o pagamento de 4 vezes o valor do bem que
foi levado ou destruído. Se a pessoa que cometeu a infração não tivesse
condições de pagar, podia ser vendida como escrava.
Tudo isso, é
claro, são aspectos de uma vida cotidiana que não existe mais. Mas com a
mensagem essencial dos textos sagrados é diferente. E essa mensagem
pode ser resumida em uma frase, que também ecoa em todas as grandes
religiões da Terra: não faça aos outros o que você não gostaria que
fizessem com você. Ou mais ainda, como Jesus diz no Evangelho de Mateus:
"Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós".
Está aí uma recomendação impossível de refutar. E que geralmente traz
ótimos resultados. Em qualquer lugar, em qualquer tempo.