O francês Michel de Nostredame (1503-1566) fez muita coisa ao longo
de sua movimentada vida: estudou medicina, inventou seus próprios
remédios, traçou o horóscopo de membros da realeza (entre vários
clientes que tinha). Mas talvez seu maior talento tenha sido a
capacidade de criar uma aura de mistério em torno de si mesmo. Ao mudar
seu sobrenome para Nostradamus (forma latinizada de Nostredame, que caía
bem numa época em que a sabedoria da Antiguidade era redescoberta) e
escrever centenas de versos enigmáticos que chamava de "profecias", ele
caiu nas graças dos poderosos de seu tempo e ainda cativa quase todo
mundo que tenha uma quedinha pelo sobrenatural. Para seus defensores
mais ardorosos, o profeta anteviu todos os grandes acontecimentos da
História entre sua morte e os dias de hoje, sem falar no que ainda
aguarda a humanidade no futuro, claro.
A fama atual do vidente
francês vem principalmente de Les Propheties ("As Profecias"), nome que
deu à coletânea de suas previsões, quase todas escritas em quadras
rimadas. Curiosamente, trata-se de uma forma poética que, em português,
está mais associada a versinhos infantis, do tipo "Batatinha quando
nasce". A diferença é que cada um dos versos de Nostradamus tem dez
sílabas, não sete, mas o tipo de rima alternada, com quatro versos no
total, é o mesmo.
Ilustração: Samuel Casal
Por
estarem reunidas, quase sempre, em grupos de 100, as quadras ficaram
conhecidas também como As Centúrias. Ao todo, Nostradamus publicou
exatamente nove conjuntos de 100 quadras e um décimo com 42 quadras. Um
erro de tradução, muito comum em português, fez com que os textos também
fossem chamados de Os Séculos, provavelmente por influência da palavra
inglesa centuries, usada para designar tanto centúrias quanto séculos. A
primeira coletânea dos versos saiu em 1555 e foi sendo ampliada até a
edição final, divulgada após a morte do autor, em 1568.
As datas
de nascimento e morte e as publicações das profecias estão entre os
poucos fatos indiscutíveis sobre a vida de Nostradamus. Muitos outros
detalhes estão cercados de polêmica e dúvida - a aura enigmática ao
redor do mais famoso vidente da história só cresceu após sua morte e
existem poucas fontes contemporâneas sobre ele.
Sabemos, por
exemplo, que o profeta nasceu em Saint-Rémy-de-Provence, no sul da
França, e que seu avô tinha se convertido do judaísmo para o
catolicismo.
Embora tenha sido tratado como "doutor" por alguns
de seus contemporâneos, o biógrafo Peter LeMesurier sustenta que
Nostradamus não conseguiu se formar em medicina. Ele foi expulso da
Universidade de Montpellier, onde fazia o curso de ciências médicas,
quando se descobriu que havia trabalhado como boticário (preparador de
remédios, um tipo rudimentar de farmacêutico) - profissão vedada aos
estudantes pelo estatuto universitário.
Para um visionário com
poderes paranormais, Nostradamus deixou a desejar em várias ocasiões. Um
dos casos mais curiosos envolve seu testamento. "É cheio de cláusulas,
como o detalhe de que a parte que deixava à viúva seria dela apenas caso
não se casasse novamente; a das filhas, quando elas se casassem; e a
dos filhos, se e quando completassem 25 anos. Idêntico ao testamento de
qualquer pessoa sem nenhum dom profético", diz Kentaro Mori, criador do
site Ceticismo Aberto, dedicado à investigação de supostos fenômenos
sobrenaturais.
Seja como for, as primeiras versões de As
Centúrias fizeram com que Nostradamus ganhasse uma admiradora de peso.
Era a rainha da França, Catarina de Medici, que, em 1556, achou ter
visto nos versos presságios de tragédias na família real. "O jovem leão
triunfará sobre o mais velho/No campo de combate na única
batalha/Perfurará os olhos através da jaula dourada/Dois ferimentos em
um, depois uma morte cruel". Ocorre que o rei Henrique II tombou numa
justa (um duelo "de brincadeira") com Gabriel de Lorges, o bem mais
jovem conde de Montgomery. A lança perfurou o capacete do soberano (a
jaula dourada), entrou pelo olho direito e saiu pela orelha (dois
ferimentos em um). A explicação exata só apareceu depois do acidente (do
contrário, ele teria sido evitado), mas a rainha logo pediu ao sábio
que traçasse o mapa astral de seus filhos.
Escrito nas estrelas
O
detalhe dos horóscopos é crucial porque ajuda a entender o prestígio
que o conhecimento esotérico tinha na época de Nostradamus. Boa parte
dos pensadores do Renascimento tinha muito respeito pela astrologia. É o
caso de Johannes Kepler (1571-1630), responsável por decifrar as leis
matemáticas que regem os movimentos dos planetas no Sistema Solar - e
que, quando da morte de seu mentor, Tycho Brahe, correu a anotar as
posições de Saturno, da Lua e de Marte para confirmar que os astros
tinham determinado o falecimento do mestre. Sir Isaac Newton
(1643-1727), pai da teoria da gravidade, era obcecado pela decifração de
profecias bíblicas. "Costumamos deixar ciência, religião e misticismo
separados, mas o fato é que os manuscritos de Newton abordam
principalmente estudos místicos e esotéricos", diz Mauro Condé,
professor de História e de Filosofia da Ciência da UFMG.
Nostradamus
defendia a possibilidade de estimar a ocorrência de eventos futuros com
base na repetição da configuração dos astros em eventos passados.
Grosso modo, se a disposição astral que anunciou a morte de um imperador
ou uma invasão bárbara se repetir, é porque coisas assim vão acontecer
de novo.
É possível identificar nas Centúrias influências de
augúrios de várias fontes anteriores. O livro bíblico do Apocalipse é um
caso óbvio, mas Nostradamus também teria se inspirado em textos de
historiadores da Antiguidade, como o romano Suetônio, e nos do monge
medieval Joaquim de Fiore. Mas a característica mais marcante das
quadras é o fato de elas serem quase impenetráveis à interpretação. "São
sempre muito vagas mesmo", afirma Mori. A linguagem não ajuda. Além de
uma sintaxe truncada, inspirada na do poeta romano Virgílio (que
funciona em latim, mas não tanto em francês), Nostradamus recorre a
palavras gregas, latinas, italianas e provençais (dialeto do sul da
França).
O uso de datas não é frequente - quando elas aparecem,
em geral é preciso esforço para achar uma correlação. Um dos exemplos
mais famosos, que ilustra bem esse caráter genérico das previsões, é a
quadra 51 da segunda centúria. Nela, o vidente diz: "O sangue dos justos
será exigido em Londres/Queimada pelos relâmpagos em três vezes vinte
mais seis/A dama antiga cairá de sua alta posição/Muitos da mesma seita
serão mortos". A interpretação tradicional é que o texto se refere ao
incêndio que devastou Londres em 1666 (multiplicando o número 20 por 3 e
somando 6, temos 66), matando muitas pessoas inocentes (os "justos") e
destruindo a Catedral de São Paulo, a "dama antiga". O detalhe é que a
catedral, até onde se sabe, nunca teve esse apelido. Versões da quadra
posteriores ao desastre substituíram "relâmpagos" por "fogo",
aparentemente no esforço de deixá-la mais verossímil. O mesmo ocorre na
análise de outros versos. Ainda que tenha acertado, o profeta é tão
genérico que até hoje ninguém conseguiu prever um acontecimento de monta
com base em sua obra. O que há é a correlação após o fato.
Considere
outra quadra famosa, a 24ª da centúria II: "Feras enlouquecidas de fome
atravessarão os rios/A maior batalha será contra o Hister/Ele fará com
que grandes homens sejam arrastados numa jaula de ferro/Quando o filho
da Alemanha nenhuma lei observar". Nesse caso, a referência ao "Hister"
(nome latino do rio Danúbio na Antiguidade) é lida como uma profecia da
ascensão ao poder de Hitler e da Segunda Guerra.
Ao vidente são
atribuídas previsões sobre a Primeira Guerra (centúria V-85), e a
conquista da Lua (centúria IV-31), entre muitas "façanhas". Sobre o que
há pela frente, antes do fim do mundo em 3797, teríamos, por exemplo, o
fim do Vaticano ("Bem perto do Tibre, a morte ameaça/Antes haverá uma
grande inundação:/O capitão do navio será preso e expulso,/O castelo e o
palácio serão queimados" centúria II-93). E a destruição de Paris ("A
grande cidade será assustadoramente devastada,/nenhum de seus habitantes
conseguirá sobreviver:/Os edifícios, as igrejas e as virgens serão
violentados,/A espada, o fogo, as pragas e os canhões nada perdoarão."
Centúria III-84).
Diante das teorias mais mirabolantes sobre
Nostradamus, é bom recordar a modéstia com que ele se descreve em carta
ao filho César, no prefácio de As Centúrias: "Embora, meu filho, eu
utilize a palavra ‘profeta’, não atribuiria a mim um título de
sublimidade tão elevada".
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